Forço-me o exercício de escrever sem filtros, para ver se ainda sou capaz, se as palavras não são esquecidas quando não são usadas, ou se não desistem de mim e emigram, ofendidas por serem relegadas para segundo plano, "olha-me esta, estamos aqui à disposição, sempre prontas, e ela prefere músicas, mas porquê?, aquilo não explica nada", vão procurar alguém que lhes dê valor, porque não lhes consigo explicar bem esta fixação na música; pior ainda, é mesmo na música, no ritmo, no tom e não nas letras, é raríssimo escolher uma música pela letra, são os sons que me fascinam, o que me fazem sentir quando ouço. E as palavras podem revoltar-se e dizer que "agora quem não te quer somos nós, não és tão amiguinha das tuas músicas?, então vai lá ter com elas agora, vá".
Quero fazer as pazes com as palavras que me têm faltado, ou então sou eu que não tenho paciência para elas, para escolhê-las, pôr de lado aquelas que decidi não usar, nunca se deve dizer nunca, mas tenho conseguido manter a minha palavra, não prometi a ninguém, só a mim mesma, por respeito, por carinho, por profundo amor e vontade primária de proteger. Mas por causa disso acho que já as usei todas, vou repetir-me, tal como os meus dias, são iguais, quer dizer, não são, eu é os vejo sempre iguais, o que é mau sinal, significa que não estou a olhar à minha volta, não tenho procurado a beleza, mas ela está lá, como sempre, na barriga redonda da minha cunhada (vou-me rir tanto se forem mesmo gémeos...); nos hamburguers feitos pelo senhor do talho da esquina, e grelhados com muitas ervas aromáticas e sumo de limão; na cara redonda e rosada do D.; nos raios de luz que passam na persiana da sala e pintam o chão com pontos dourados (só reparei esta manhã, como é possível?, tenho de fotografá-los... mas para isso tenho de acordar cedo...); nos vasos de amores-perfeitos que a minha florista de estimação tem à porta da loja; no padrão estudado dos quadrados de lã macia que já se parecem com uma manta (e vou aprender a fazer flores de crochet para a enfeitar mais ainda); no único momento de descontracção que tivémos a sós esta semana, entre caracóis e cerveja num fim de tarde sem pressas, em que lhe perguntei se gostava da vida que tinha; até nos disparates que digo e me fazem perceber que já não tenho assim tanto medo de cair no ridículo ("olha, pus dez euros de gasolina e o contador a 0, e já vai com 380 km... mas eu não faço 380 km numa semana...").
Acho que já fiz as pazes comigo mesma.
* Ou Momentos esquecidos
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