A sério, tenho de escrever para não me esquecer desta noite surreal, daquelas que não são planeadas nem previstas, mas que acabam por ser as melhores.
Enfiei-me no comboio para Lisboa, uma visita de médico para ver como estava a mãe e os putos, mas que de médico não teve nada, porque foi tudo menos saudável. À minha espera na Gare do Oriente, no lugar de sempre, o puto mais velho, que me levou à casa que voltou a ser dele também porque se mudou de novo, com a minha cunhada e o D., para a mãe não estar sozinha. Agora, só sai de lá para ir para a primeira casa dele, aqui perto de mim.
Carro estacionado e ele sai-se com um "e que tal um aperitivo antes do jantar?". E assim começou a noite, no café da Ti Maria que já foi a tasca mais tasca daquele bairro, mini para mim, média para ele, garrafas numa mão e cigarro na outra (à porta, claro), ouço-o falar no amor que sente (aliás, passei a noite toda a ouvi-lo babada de felicidade por sabê-lo feliz), e nisto aparece um carocho que mora perto, a pedir uns trocos. O meu irmão conhece todo o pessoal que pára ali à volta, dos velhotes que passam horas a jogar às cartas ou ao dominó aos janados que não fazem mal a ninguém a não ser a eles próprios, como este, que continuava a insistir que só precisava de 60 cêntimos, e que amanhã lhe pagava. E ele com uma paciência de santo lá lhe ía dizendo que não, dinheiro para copos de tinto não lhe dava, "dou-te um cigarro, se quiseres, vai mas é para casa enquanto ainda estás bonzinho, olha para essa cara toda negra, ontem não estavas assim" e o carocho a dizer que não, ontem tinha caído dumas escadas, e nós a trocarmos olhares e a pensarmos a mesma coisa sem o dizer "levaste foi um arraial de porrada". Quando viu que não ía receber as moedinhas virou-se e acho que só nessa altura é que percebeu que eu estava ali, e fez tenção de se aproximar para me pedir a mim o guito. E num gesto instintivo que possivelmente nunca vai desaparecer, o N. segurou-o pelo ombro "oh, com ela não te metes" e diplomaticamente convidou-o a ir dar uma volta.
Depois de jantarmos só os três, porque é "fim-de-semana de pai" para o D. e dia de curso para a C.; e de eu confirmar com alívio e gratidão que a minha mãe tem mais força do que nós sonhamos e está a aguentar-se bem, saímos para beber café no outro lado da rua, e quem é que está à porta desse cafézinho? O carocho, pois claro!
Descemos a avenida a pé para levantar dinheiro, e falamos do fim do mundo e de como a Natureza se anda a chatear cada vez mais. O N. tem uma teoria sobre isto, diz que o planeta Terra é como um orgão vital do corpo humano, um rim ou um fígado por exemplo, que ao longo da sua vida vai sofrendo ataques de vírus e bactérias que o fazem adoecer, o planeta cria anti-corpos e defende-se como pode, mas vai enfraquecendo e envelhecendo, até que um dia simplesmente deixa de trabalhar. Neste caso os vírus somos nós, a espécie humana, a única estúpida o suficiente para estragar o meio em que vive (o único que tem).
O puto desafia-me para um jogo de snooker, temos tempo "a C. deve ir beber um copo com os colegas, só vai chegar às duas da manhã, vais ver" (enganou-se, a C. assim que saiu do curso veio a correr para os braços dele, fardada e tudo). Entramos no salão de jogos refundido numa praceta sombria atrás do descampado que já foi um cemitério, subimos as escadas estreitas e abrem-nos a janela para podermos fumar mesmo sem autorização. Estávamos no segundo jogo quando um vulto conhecido sobe as escadas: o carocho ("mas este gajo anda a seguir-nos?") vem rondar as mesas a pedir cigarros, e pára na nossa a dar palpites sobre como devíamos jogar. Nessa altura a paciência do meu irmão já se estava a esgotar, e houve ali um ou dois momentos que ele teve vontade de lhe enfiar o taco pela garganta abaixo, mas o coitado (porque é mesmo um coitado, naquele estado só suscita pena, mais nada) acabou por ir embora. Resultado final: 3 - 2 ganhou o puto (e os 2 que ganhei foi porque ele meteu a bola branca a jogar à preta, pronto...).
Voltamos ao café do costume onde a C. está à nossa espera, e para chegar mais perto do nosso grau alcoólico bebe dois Licor Beirão de enfiada. Distraio-me a ler uma revista e a beber a minha cerveja enquanto eles matam saudades um do outro (eu também já fui assim...), depois vejo o Zé a preparar os folhados ultra-congelados que a sogra (acho que é sogra...) vai pôr no forno às 6 da manhã, e sei que não tarda nada vai convidar-nos a sair. Dito e feito, dá-nos mais uma rodada que é bebida cá fora, porta fechada e luzes apagadas. E passamos quase uma hora ali na esplanada vazia com as mesas e cadeiras encostadas a um canto, cigarro atrás de cigarro e conversa atrás de conversa, desta vez são coisas sérias, que têm de ser discutidas e decididas, e eu não fazia ideia que era preciso decidir tanta coisa, quem disse que a morte é um fim, não é, é o princípio da burocracia.
Apercebo-me que alguém vem a descer a rua aos ziguezagues (juro!) na nossa direcção e começo a rir, é outra vez o carocho, faz uma festa quando nos vê, braços no ar, pede mais um cigarro para o caminho, diz que vai buscar o carro, agora que conseguiu fugir à polícia. Eu olho para o N. com ar de pânico, sem querer acreditar que aquele tipo em estado de quase morte cerebral ía mesmo pegar num carro pondo em risco a vida de outras pessoas, e ele sossega-me com um abanar de cabeça, o gajo está a inventar, não tem carro nenhum. E continua a descer a avenida como se estivesse a andar contra ventos ciclónicos.
Perto das 2 da manhã precisamos de tabaco. Próxima paragem: bombas de gasolina, as mesmas que já nos safaram noutras vezes. E que por acaso também têm cerveja. Boa! Encostamo-nos ao pequeno balcão junto do guichet de segurança por onde o empregado porreiro nos passa os maços de tabaco e as garrafas pedidos, e ficamos a apreciar a rapariga que tenta desesperadamente andar nuns saltos de 10 cm de uns sapatos de verniz vermelho. Assim que ela vira costas, nós e o empregado atrás do vidro rimos como perdidos. E do nada a C. pergunta "Quanto custa uma garrafa de Licor Beirão?" e por baixo do guichet passa a garrafa, copos de plástico e um copo cheio de cubos de gelo que não me seduziram, não sou muito adepta de misturas, comecei com cerveja e termino com cerveja.
"Sabes o que me apetecia agora? Um bolo quente!!" A melhor sugestão e a última paragem antes de casa, a mini-fábrica que todas as noites, a partir da 1 da manhã, enche a rua com um cheiro indescritível de bolos quentes. Quando a porta abre, entramos para um espaço minúsculo onde cabem no máximo 6 pessoas (magrinhas), o resto está ocupado pelo balcão cheio de todas as gulodices que uma pastelaria tradicional tem o orgulho de fazer: pastéis de nata, palmiers, almofadas a transbordar de creme branco, rins, folhados mistos e de salsicha, croissants de tudo e mais alguma coisa... um sonho!
Saímos para o frio intenso da madrugada (para dar lugar a mais clientes) com um saco cheio, e logo ali comi um croissant de chocolate e um palmier recheado, enquanto ficava a saber que devo voltar a ser madrinha em breve, pelo menos eles estão a fazer por isso, decisão pensada e não devaneio, porque querem muito, porque é a altura certa.
Acabo a noite a fazer o impensável, a fumar um cigarro à janela da casa da minha mãe, sem o medo adolescente de que as vizinhas vejam e lhe vão contar ("pelo amor da Santa, são 4 da manhã, ninguém está a espreitar atrás das janelas!!").
E a frase da noite foi " Esta não é a mulher que eu andava à procura, é a mulher que eu estava à espera (de encontrar)".
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