sábado, 25 de setembro de 2010

Obrigado

Ver a minha mãe a sorrir, feliz, novamente feliz, é algo por que rezo todas as noites. Ver o pai doente consumia-a, ela que não é capaz de ver ninguém a sofrer, quanto mais a pessoa que amou durante mais de 30 anos. E hoje os meus olhos confirmaram aquilo que a voz dela já me anunciava pelo telefone, o riso solto, o cabelo mais comprido, os cestos de frutas na cozinha e as guloseimas na dispensa (tinha tanto medo que ela deixasse de se alimentar como deve de ser, mas não, faz refeições à medida e variadas, e até a contar-me isso o rosto se abre num sorriso), tomou as rédeas da sua própria vida sem depender de ninguém, criou as suas rotinas sem sentir solidão, está a aprender a gostar desta liberdade de dispor das horas como lhe apetece.
Está feliz e agradeço a alegria com que me contagiou hoje, numa jantar cheio de palhaçadas, só mãe e filhos à mesa, a lembrar a nossa infância e a história da Catota e do Birote (quando o meu irmão era puto - mais puto do que é agora - trabalhou nas férias do Verão numa fábrica de plásticos e tinha um colega cabo-verdiano, é claro que as primeiras palavras que aprendeu foram calão do grosso, e quando a cadela da avó, isto não soa nada bem, chamava-se Jóia - a cadela - teve dois filhotes, o N. baptizou-os de Catota e Birote, a avó como não sabia o que queria dizer, ficou toda contente por alguém se lembrar de alternativas a Jóia ou Pantufa, todos os cães que ela teve tinham assim estes nomes originais. O pessoal ria até às lágrimas quando a ouvia a gritar pelos cachorros, mas não me lembro se ela alguma vez chegou a perceber porquê. Mais tarde, quando eu saí de casa e a mãe, que nunca nos deixou ter um cão na vida, foi buscar a Catota na semana seguinte e o pai insistiu que ela fosse registada e vacinada, o N. teve de contar para eles não passarem pela vergonha de andar a asneirar no veterinário. E assim abreviaram o nome para disfarçar mas nós, os putos, continuamos a gozar o prato e a chamá-la pelo nome "completo", para desespero da minha mãe).
Na hora de carregar o resto das coisas do N. para a casa nova, vi o quadro do urso de peluche, mais um que fiz em ponto cruz em lã sobre tela, quando tinha metade da idade e o dobro da paciência, o quadro que um dia, há um ou dois anos atrás, ela encontrou guardado em cima de um armário e me perguntou se o queria levar para minha casa, eu respondi que não, que esse quadro sería para pôr um dia no quarto do bebé, quando tivesse um filho, e assim, no dia em que eu dissesse que queria levar o quadro ela íria saber que ía ser avó. Ali estava ele, embrulhado e pronto para levar, e eu não tive coragem de repetir as palavras, tive medo de ouvir um "mas isso foi o que disseste há dois anos atrás, e até agora..." e eu não sabia o que responder, bem bastou ao jantar, eu vi o relance de esperança nos olhos dela quando comentei que tinha engordado 1 kilo e meio, vi a expressão da cara enquanto perguntava ansiosa "mas porquê?" (eu sei o que tu querias ouvir mãe, mas não to posso dizer, e levo o quadro antes do tempo, sem saber quanto tempo antes, e vou guardá-lo em cima do armário, e um dia, um dia, mãe, eu vou dizer-te o que tu sonhas ouvir).

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