Estava a colar as últimas fotos nos álbum (as do casamento do meu irmão mais novo, que por acaso até já acabou, é quase uma ironia...) e vi este texto no meio das páginas, mais uma das coisas bonitas que guardo religiosamente. Não costumo fazer resoluções de ano novo (mas hoje decidi que vou voltar ao hábito de beber chá, amanhã vou comprar outro termo de 1 litro para levar todos os dias para o escritório), mas identifiquei-me com muito do que aqui está escrito. Pequenos gestos ou grandes mudanças, dos que se prometem todos os anos, ou dos que se realizam uma vez na vida. Mas todos importantes. Todos capazes de tornar este ano inesquecível.
"Na mão doze passas, uma para cada resolução que se quer tomar no novo ano. Sensatas, prepotentes, ridículas, seguras. Nossas.
Primeira passa: Tempo
Este ano vamos ter tempo. Vamos escapulir-nos mais cedo do trabalho para entregar o corpo a massagens. Vamos ao cinema uma vez por semana, sessões duplas se for preciso, Tarantino ou Oliveira. Vamos contorcer a agenda para marcar jantares de amigos, daqueles que se alongam até virarem ceia, pequeno-almoço. Vamos esticar-nos no sofá, indiferentes à loiça que grita para ser lavada. Vamos ver os miúdos sem ser a dormir, vamos dar um beijo aos pais sem ser no Natal. Vamos ter tempo para nós, para rir agarrados à barriga, para ler revistas à beira rio. Vamos enterrar o telefone debaixo do colchão, atirar o despertador contra a parede, dormir mais uma hora, fazer da preguiça um pecado imortal.
Segunda passa: Corpo
Este ano vamos deixar o ginásio onde não pomos os pés, onde não levantamos pesos, onde o rabo não diminui, onde os músculos não aumentam, onde a carteira emagrece. Vamos calçar os ténis e subir e descer colinas, para isso temos sete. Vamos passear o cão mais vezes, ensiná-lo a atirar a bola para a apanharmos. Vamos correr os metros que conseguirmos, hoje dois, amanhã quatro, para o ano a maratona. Vamos comprar uns patins, arranhar os joelhos. Vamos dançar na sala, pular na cama, trepar paredes, subir um andar a pé, mais dá-nos cabo dos rins. Vamos desejar com muita força que o corpo ganhe contornos de escultura. Esperar para ver.
Terceira passa: Comida
Este ano não vamos renegar um hambúrguer, umas batatas gordurosas, uma piza familiar. Não vamos ostracizar os brócolos por serem verdes, torcer o nariz aos espinafres, fazer a segregação da cebola. Não vamos desmaiar com os transgénicos, benzer-nos perante salada pronta-a-servir. Vamos deixar o enjoo de lado para experimentar peixe cru, perceber que se perderam anos de vida, nunca mais querer outra coisa. Vamos espalhar tachos pela cozinha, sujar o fogão, errar até fazer bem, perceber que a comida feita existe por algum motivo. Vamos tornar-nos reis da cozinha, impressionar o mundo. Vamos estourar dinheiro num restaurante caro, vamos sentar-nos numa tasca. Vamos esquecer a ASAE e voltar ao pato à Pequim.
Quarta passa: Nós
Este ano vamos ajoelhar-nos para um pedido de casamento. Vamos ganhar coragem para lhe dizer que temos outro, que o seu melhor amigo se faz a nós, e nós a ele. Vamos mudar de casa, uma tão grande como os nossos sonhos. Vamos dizer-lhe que o amor já lá vai, passou. Vamos tentar ter um filho. Vamos apanhá-lo com outra, vomitar todas as lágrimas e arranjar um novo amor. Vamos esquecer as paixões de 2008, de 2007, todas as que nos espatifaram o coração. Não vamos dizer que o problema somos nós, não eles, porque às vezes são mesmo eles. Vamos fingir que nunca dissemos “nunca mais” e vamos viver tudo de novo. Vamos dizer “desculpa”. Vamos esperá-la com o jantar feito. Vamos levá-lo à bola. Vamos pedir-lhe a chave de casa. Vamos dizer “não desculpo”.
Quinta passa: Alma
Este ano vamos ser solidários. Vamos mandar trabalhar quem exigir cinco euros para “uma sopinha”, pagar um corneto-morango a quem o pedir com convicção. Não vamos dizer “para comida sim, droga e vinho é que não”. Vamos sacar de uma moeda quando a intuição nos mandar, oferecer o último cigarro, esticar o isqueiro para lume. Não vamos deixar gorjetas ao empregado que nos levou o copo que ainda tinha vinho, ao taxista que quase nos abateu a tiro por pedirmos factura. Vamos dar a volta ao armário, deixar partir calças que nunca viram a luz do dia, livros que já foram lidos, pacotes de arroz em excesso.
Sexta passa: Viagens
Este ano não damos a volta ao mundo, mas damos voltas no mundo. Vamos fazer o mapa de carro, escolher a low cost mais barata, somar cidades. Vamos para fora cá dentro, vamos para fora lá fora. Vamos ao castelo de 28, vamos ver Lisboa de barco, vamos ao Porto pelos carris. Vamos estar em movimento, vamos ficar parados a olhar para Nova Iorque, Roma, Madrid, Xangai. Vamos ter saudades de casa. Não vamos querer voltar.
Sétima passa: Poupança
Este ano vamos virar o porquinho ao contrário, pescar as últimas moedas, jurar que tudo será reposto. Vamos resistir ao crédito tão fácil que só pode ser difícil, ao empréstimo de seis meses que é para a vida toda, ao dinheiro emprestado que é sempre vendido. Vamos fazer explodir o subsídio de férias, pôr nos pés uns sapatos de dezenas, na parede um plasma de milhares, não é verdade que uma vez não são vezes? Vamos fazer contorcionismo orçamental até ao final do mês, dos meses, do ano. Vamos suspirar por mais, vamos ser felizes com menos. Vamos fechar a poupança-reforma, abrir uma conta-vida.
Oitava passa: Gritos
Este ano vamos gritar com a EMEL, rasgar em pedacinhos a décima-oitava multa, lançá-la ao ar versão confetti. Vamos inverter os papéis, gritar com o chefe, exigir um “obrigado”, um “por favor”, um sorriso? Vamos gritar com quem deixar o cão aliviar-se nos passeios públicos, com quem não parar na passadeira, com peões que se arrastam na passadeira. Vamos gritar pelo Benfica, gritar com o Sporting. Vamos gritar com a crise, com os professores, com os bancos nacionalizados, com o prato que se desfez no chão, com o três no Euromilhões, com a chuva sem chapéu à vista.
Nona passa: Parvoíces
Este ano vamos oferecer abraços a quem passar, vamos para a janela lançar bolas de sabão. Vamos pôr um trampolim no meio da rua e cobrar um euro por salto. Vamos trabalhar com um fato de Batman, assegurar que só podemos trabalhar em missões heróicas ao serviço da pátria, nada de mandar mails ou atender telefones. Vamos andar de bicicleta na rotunda do Marquês. Vamos pedir um beijo na boca a um estranho. Só para ver a que é que sabe.
Décima passa: Eu
Este ano vou jantar fora sozinho, pedir só um bilhete no cinema. Vou passar um fim-de-semana inteiro de pijama, sem lavar os dentes antes de dormir. Vou apagar o teu número de telefone e verter lágrimas agarrada a um peluche. Vou cortar a franja e pintar as unhas dos pés na mesa da sala. Vou aprender espanhol, mandarim, informática e cozinha do Camboja. Vou atravessar o restaurante para dizer que o miúdo aos berros me tira o apetite. Vou ver novelas às escondidas, ler romances pop debaixo dos lençóis. Vou mandar o bife para trás as vezes que forem precisas, voz firme, olhar erguido. Vou dizer que não gostei da prenda, exigir o talão de troca. Não vou encher o mundo com as minhas dores, bem bastam as dores do mundo.
Décima primeira passa: Confissões
Este ano vamos pôr tudo em pratos limpos. Vamos contar quem fez o risco na porta esquerda do carro, quem atacou a poupança para comprar o gadget. Vamos contar que aquelas férias com amigos no Algarve, há doze anos, afinal foram em Ibiza. Com o namorado oito anos mais velho. Que não tinha carta. E que era sensível ao álcool. Vamos dizer que mentimos, que aquele vestido a transforma num cachalote, não a faz parecer mais nova, muito menos magra. Vamos anunciar que foi por medo que não entrámos na montanha-russa, não foi bem por prescrição médica. E que a deixámos casar com outro porque fomos estúpidos. E teremos que viver com isso para sempre.
Décima segunda passa: Horóscopo
Este ano não queremos saber se Leão vai bem com Virgem, se Capricórnio irá para a cama com Peixes, se Sagitário só poderá ser feliz com Balança. Vamos dar fogo às previsões que anunciam dores de dentes, febres altas e Júpiter na casa de Saturno. Vamos rir-nos das boas probabilidades de aumento, de negócios de milhões, de amores para toda a vida. Não nos digam que Abril vai ser um mês excepcional, que em Agosto pode estar calor e que em Novembro é capaz de chover. Não tracem a nossa vida por um ano, que a nós só nos importa o hoje."
(escrito pel'a pipoca mais doce no nº 4 do Jornal Lux - Janeiro de 2009)
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