quarta-feira, 4 de julho de 2018

Agridoce (IV)

No dia em que o meu pai faria 65 anos, o meu filho está alegremente "barricado" em casa dos avós paternos, para onde foi há dois dias e de onde não quer sair, onde dorme sozinho com a plena consciência que os pais não estão lá perto, onde segue o avô por todo o lado, como uma sombra, onde passa os dias no meio da terra e a comer todos os doces que só os avós têm o direito de dar. Está bronzeado e com as mãos e pés tão encardidos que nem com palha de aço o surro vai sair todo. Pareceu-me mais magro quando o fui visitar hoje, num primeiro vislumbre de saudade, mas depois percebi que ele está mais alto, ele cresceu em dois dias e as pernas esticaram, cheias de nódoas negras e esfoladelas de quem não pára quieto. Ele está feliz e a criar memórias de infância inestimáveis, daquelas que marcam para a vida. E eu só posso estar grata por ele ter ainda quem lhe possa dar esse amor insubstituível, e essa visão de um mundo cheio de couves e árvores de fruto, ratoeiras e mangueiras, um quintal para jogar à bola e grelhados no carvão. 
No dia em que o meu pai faria 65 anos, senti com mais força esta pena por eles não se terem conhecido, não se terem tocado e brincado juntos, por não poder ver nos olhos dele o orgulho desmedido que tería pelo neto, por não poder vê-lo a fazer-lhe as vontades todas, a dar-lhe a mão para irem ao café, a mostrar-lhe a sua Serra, a contar-lhe histórias de Angola e de mecânica. Senti as saudades que já não doem misturadas com a alegria genuína de ver um filho feliz, pois é só isso que posso pedir e agradecer, este filho saudável e feliz, curioso e desenrascado, obstinado e mimado, confiante o suficiente para, depois do jantar, me dizer como quem não quer a coisa "já podes ir embora, mãe..." (enquanto me empurrava ligeiramente para eu me levantar mais rápido...). E vim, sem peso no coração nem dor na alma, porque o que estou a perder não tem comparação com o que ele está a ganhar, em memórias e afetos, crescimento interior, autonomia e independência. Porque ele está a crescer, não só em altura de pernas, mas em largura de horizontes.

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