As viagens intermináveis de nacional, carro atafulhado até ao teto e as músicas do Paco Bandeira e da Cesária Évora no leitor de cassetes. As paragens obrigatórias no restaurante que só servia canja e frango assado, e no café das sandes de leitão. E outras tantas para o meu irmão vomitar, e para lancharmos tudo o que a minha mãe se lembrava de trazer. O fascínio de entrar na casa da minha avó, subir as ingremes escadas de pedra, e ir roubar bolachas ao pote da bancada da cozinha, que ela fazia questão de ter sempre abastecido. O cheiro dos chouriços e murcelas pendurados do teto, por cima da lareira acesa. O frio da adega que era o orgulho do meu avô. As mulheres a lavarem a roupa na ribeira, e a estenderem-na a secar nas pedras lisas das margens. A alegria de rever os primos que só saiam lá de casa à noite, para irem dormir. A liberdade de brincar nos campos sem regras nem medos nem horários, a não ser os das refeições. A chave de casa sempre colocada do lado de fora da porta de entrada. Acreditar que quem vem, vem sempre por bem. Sermos mimados até à exaustão pela família toda, numa sensação que só tem quem sabe o que são as saudades. Sentir-me ainda mais mimada, porque durante quase dez anos fui a única menina no meio dos cinco primos. As sandes de queijo da Serra e presunto aos domingos de manhã, no mercado de Gouveia. Ver o meu pai a escolher cada queijo com cuidado e sabedoria, para trazer para Lisboa um pouco da sua terra. A noite em que o meu irmão, acabado de sair do banho, pijama vestido e cabelo ainda molhado, a brincar às escondidas, achou que o sítio ideal para ninguém o encontrar era dentro da lareira... A mesa sempre posta com pão e vinho e sumos e queijo e chouriço. Tal como as mesas de todas as casas que visitávamos, de tios e primos e tios de primos, numa romaria que não tinha fim, de querer rever todos. As bôlas de carne e os folares de Páscoa que a minha avó fazia e ía coser ao forno comunitário. A boneca de trapos matrafona enorme que o padrinho me ofereceu, e que decorou a minha cama até ao último dia. Irmos com o meu pai escolher e cortar o pinheiro de Natal (sim, natural e contra todos os preceitos ambientalistas) e apanhar musgo para fazermos o presépio ao lado da lareira sempre acesa. Passar tardes a apanhar pinhas e bater-lhes com uma pedra para soltar os pinhões, que comíamos logo ali (mesmo os que caíam para o chão). As vindimas que fazíamos sem esforço, na brincadeira; a apanha da azeitona que odiávamos por ser em pleno Inverno gelado. A excitação histérica de brincar na neve. Fazer bonecos de neve e batalhas de bolas de neve. Voltar para casa encharcados (cheguei a apanhar queimaduras na pele, do gelo) mas a rebentar de emoção. Ir ao café da aldeia e fazer disso um acontecimento. Comer três gelados por dia porque ali o meu pai nos fazia as vontades todas. Os dias passados na Barragem, à sombra das árvores e dentro de água. O dia em que fui apanhada por uma corrente subterrânea, devia ter seis anos, não sabia nadar bem, e a minha mãe se atirou à água para me agarrar. Mesmo ela não sabendo nadar. Ir à missa do Galo e ficar a ver o madeiro de Natal a arder. Acordar com o som dos badalos das ovelhas e as vozes dos pastores. O pão fresco com requeijão todas as manhãs. O cabrito assado no forno a lenha que o meu pai insistiu em comprar para a cozinha. O manto amarelo das mimosas em flor. A dimensão desmedida da Serra aos nossos olhos pequenos, as paisagens a perder de vista, áridas no Verão e nevadas no Inverno. Mas sempre magestosas. O som das cigarras nas noites quentes de Verão, quando me sentava em silêncio ao lado do meu pai na varanda grande, depois do jantar. Sei que essas noites foram das mais felizes da vida dele. Sei que a minha infância foi profundamente mais feliz por todas as férias passadas naquela casa. Verões intermináveis e Natais aconchegantes. Um sentido de família alargada e de pertença, de hospitalidade e comunidade.
Hoje a casa que mais marcou a minha infância deixou de me pertencer, num misto de alívio e saudades de um tempo que teve o seu tempo. Desejei aos novos donos, sinceramente e a conter as lágrimas, que sejam tão felizes nela como eu fui. E guardo com um sorriso as memórias que tenho a imensa sorte e privilégio de ter vivido.
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